A crise existe. É política e civilizacional." O diagnóstico é breve mas não deixa lugar à dúvida. Remete para uma pergunta: como se manifesta? E pede respostas. Encontrá-las seria a maior ambição da conferência "Que Valores para Este Tempo?", que começa hoje e se prolonga até sexta-feira, 27, na Fundação Calouste Gulbenkian. Em vez de respostas, Rui Vilar, o presidente daquela instituição, prefere falar de pistas. Pistas que venham a ser exploradas do ponto de vista do investimento intelectual e artístico..Desenhada pelo filósofo Fernando Gil - entretanto desaparecido -, a conferência insere-se nas comemorações dos 50 anos daquela instituição e propõe-se verificar até que ponto essa crise se manifesta nos diversos domínios do pensamento: estética, ética, política, no conhecimento científico. Paulo Tunhas, o filósofo português que irá presidir à primeira das sessões, justamente sob o tema "Um mundo em crise", sintetiza a ideia que está na génese deste encontro: "Articular o sentimento geral de crise com as várias crises, tal como se manifestam nos diversos planos do pensamento." No texto de apresentação da conferência - um dos últimos que escreveu -, Fernando Gil chamou-lhe "crise geral de sentido", que se "acha declarada nas várias declinações da temática 'fim' por vários pensadores da segunda metade do século XX". Como sublinha Tunhas, a sua intenção ao delinear este encontro era retomar a ideia de crise a partir da maneira como se manifesta nos conceitos platónicos em que assenta a civilização ocidental: Verdadeiro, Belo, Bem. .A ideia terá nascido de uma conversa entre Fernando Gil e Emílio Rui Vilar, como o próprio declarou ao DN. "O debate que tive com ele conduziu a que o tema fosse a reflexão sobre as finitudes do nosso tempo e o debate sobre os valores que devem ser alicerces nas grandes áreas de preocupação das sociedades." Os três grandes valores platónicos que entroncam com os valores integrantes dos estatutos da Gulbenkian. .Comissariada por Danièle Cohn (ver entrevista), professora de Estética na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) - e viúva de Fernando Gil -, a conferência reúne no Auditório 2 da Gulbenkian, em Lisboa, especialistas internacionais em várias áreas do pensamento. Além de "O mundo em crise", o programa organiza-se à volta de temas como "Valores cognitivos: conhecimento científico e filosófico"; "Valores estéticos: a arte e o seu público" e "Valores éticos e políticos". (Ver programa). Uma divisão temática orquestrada por Fernando Gil sempre com base na tal "crise de sentido", que na actualidade - segundo o texto do filósofo - se caracteriza por uma ruptura em relação ao "substrato 'platónico' do agir e do pensar. Aquilo que se pretende destituir é a verdade ou o belo enquanto tais, e por isso falamos de crise geral do sentido e dos valores". .Além de um sentimento generalizado de depressão, essa crise tem manifestações bem reais e fundamenta a necessidade do debate. "É tempo de parar com atitudes de relativismo ou de responder com soluções do tipo politicamente correcto, por um lado, por outro com os radicalismos dogmáticos". Respostas que não servem para os problemas das sociedades actuais, defende Rui Vilar. Posto em linguagem filosófica, "a temática do 'fim' não é um capricho niilista de alguns filósofos ou um efeito de moda, mas uma interpretação legítima do devir da sociedade e do pensamento". .Sem que o seu objectivo assumido seja esse, Rui Vilar gostaria que esta conferência fosse contagiada pelo projecto Estado do Mundo e que daí saíssem ideias comuns para explorar. .Da eficácia das ideias.É sobretudo disto que se fala quando se fala de objectivos a alcançar numa discussão sobre o 'fim' de um tempo ou dos seus valores e da maneira de o superar. "Possuímos meios, instrumentos, capazes de efectuar essa superação? É-nos possível descortinar outros valores que estabeleçam pontes entre domínios que nos aparecem como desconexos, exibir continuidades internas a cada esfera de sentido (cognitivo, ético- -político, estético) aproximando termos opostos, e revelar talvez afinidades entre o Verdadeiro, o Bem e o Belo?" As interrogações foram formuladas por Fernando Gil. Ele mesmo arriscaria a resposta. "A procura desses novos valores e de continuidades insuspeitadas - só há sentido onde existe continuidade - é uma tarefa desesperadamente urgente. Não há alternativa.".Um convite ao debate urgente que passa necessariamente pela questão da eficácia das ideias. Ou seja, podem esperar-se resultados práticos. Paulo Tunhas põe aqui uma nota de optimismo. "Com jeito e sorte conseguem-se efeitos. O bom pensamento consegue fazer essa ponte e actuar de certa maneira sobre a realidade." E também os tais palpites quanto ao que pode vir. O dele é contraditório. "Penso o pior", mas... "tento acreditar que se irá repensar essas questões de forma eficaz.".É a ideia da filosofia enquanto ponte, da abertura defendida por Fernando Gil, " de ser percebido pelo maior número de pessoas", como precisa Paulo Tunhas, com quem escreveu em co-autoria o livro Impasses. O discípulo deixa aqui uma nota para o que espera venha a ser esta conferência. "Que faça as pessoas pensar um bocadinho melhor, com menos preguiça e dogmatismo." *Com Paula Lobo e Maria João Caetano